sábado, janeiro 21, 2006

O Aroma da Goiaba


Li este livro assim que acabei o anterior. Li-o em dois dias apenas e antes de começar já sabia que ia gostar. Primeiro porque foi uma prenda de aniversário de dois amigos meus. Ora, amigos de verdade acertam sempre quando compram um livro para oferecer. Acertam porque nos conhecem bem, mas também porque a magia da Amizade entra para dentro do livro e torna essa leitura em algo de especial.
Depois por se tratar de uma entrevista. E sobretudo pelo facto de o entrevistado ser o Gabriel García Márquez. Alguns factos e ideias já eu conhecia de outras leituras, mas outros conseguiram surpreender-me. Uma dessas surpresas é o facto de ele ser supersticioso. Por exemplo, não escreve se não tiver no quarto flores amarelas, pois acredita que lhe trazem sorte. Há uma parte da conversa que Márquez mantém com Plinio Apuleyo Mendoza em que os dois se referem a esse aspecto. Acabando de falar sobre a sorte das flores amarelas e a repulsa pelo ouro, fazem uma associação entre o mau gosto e a má sorte.


"(Plinio) - Tu e eu aprendemos na Venezuela uma coisa que nos serviu de muito na vida: a relação que existe entre o mau gosto e a má sorte. A "pava", como chamam os venezuelanos a este efeito maléfico wue podem etr certos objectos, atitudes ou pessoas de gosto rebuscado.
-(García Márquez) - É uma extraordinária defesa que o bom sentido popular levantou na Venezuela contra a explosão de mau gosto dos ricos.
-Fizeste, cfreio, uma lista completa de objectos e coisas que têm pava, lembras-te de lagumas?
-Bem, há as óbvias, as elementares. Os caracóis atrás da porta...
-Os aquários dentro das casas...
-As flores de plástico, os perus reais, as mantilhas de Manila...a lista é muito grande.
-Mencionaste uma vez esses rapazes que em espanha entram a cantar num restaurante com longas capas negras.
-As estudantinas. Há poucas coisas tão "pavosas" como essa.
-E os fatos de cerimónia?
_Também, mas gradualmente. O fraque tem amsi "pava" do que o smoking, mas menos do que a casaca. (...)
-Tínhamos encontrado outras formas mais subtis de "pava". decidiste uma vez, por exemplo, que fumar nu não tinha efeitos maléficos, mas que fumar nu e passeando sim.
-E andar nu e com sapatos.
-Claro.
Ou fazer amor com as peúgas calçadas. É fatal. Não pode correr bem.
-Que outras coisas?
-Os inválidos que tiram partido dos seus defeitos para tocar um instrumento musical. (...)
-Suponho que haverá palavras com efeitos maléficos. Quero dizer, palavras que nunca usas quando escreves.
-Em geral, as palavras tiradas da linguagem dos sociólogos: nível, parâmetro, contexto. Simbiose é uma palavra com "pava".
-Enfoque também.
Enfoque, claro.(...)
-E pessoas com o mesmo efeito?
-Existem, mas é melhor não falar delas."

(p. 188-190)

Como se vê por este diálogo, é uma entrevista que é mais uma conversa de amigos, uma conversa entre dois escritores amigos. Tem este tom leve, cativante, e inclui algumas fotografias do escritor, em diferentes momentos da sua vida.
No prefácio, Plinio Apuleyo Mendonza recorda assim a reacção de García Márquez quando lhe apresentou a ideia da entrevista, que por sua vez lhe tinha sido apresentada em paris por uma marquesa, a pedido de um editor francês:
"É uma ideia do caraças", disse. "Não estás a ver que dessa forma poderíamos dar por despachadas para sempre as entrevistas?"

terça-feira, janeiro 03, 2006

Fim de um Litígio

"Vim hoje, pela última vez, visitar o que foi a minha paisagem, estas quatro ruas onde viviam as pessoas da minha condição, que cumprimentava e me cumprimentavam; (...). Nada há nela que recorde a minha vida, é tudo uma fachada estranha, mas, por vezes, a luz apaziguadora da tarde, um gesto do vento entre as suas árvores, um movimento das sombras através das suas montanhas, um persistente som dos pássaros ou uma precipitação de aguaceiro, fazem-me sentir, por instantes, que ainda permaneço. Que ainda hoje é uma manhã lenta de um longo dia que o tempo atravessa vagarosamente, enquanto os meus olhos acariciam as lajes do meu pátio, os ladrilhos e os azulejos que mandei trazer da Andaluzia e as folhas soltas do limoeiro do quintal." (p.283)

Despede-se Dona Inês e limita-se a ser uma morta porque chegou ao fim o lítigio de séculos pelas terras do Vale de Curiepe. Um descendente de Dona Inês, Francisco, e um descendente do escravo liberto Juan del Rosário, José Tomás, chegam a um acordo, que resultará na construção de um empreendimento turístico de luxo.
Dona Inês, estupefacta:

"Agora dizem ao Francisco que deve falar com José Tomás e ao José Tomás que deve falar com o Francisco porque a falar é que a gente se entende. Já vês tu o que é a ignorância. Se eu soubesse que o meu pleito se resolvia numa conversa, tu pensas que eu andaria a saltar de procurador em procurador, raivosa como uma cobra cada vez que me chegavam notícias de que os teus negros se tinham assente nas minhas possessões, e quando me levavam aos demónios quando me diziam que para maior ousadia tinham levantado uma igreja? (...) Conversar, Alejandro, era só isso. Anota, escrivão, porque já estou farta de que a história me tenha vituperado: dona Inês mandou queimar a aldeia a Juan del Rosario porque não sabia negociar." (p.272)


Fechei o livro "Dona Inês contra o Esquecimento", da venezuelana Ana Teresa Torres, contente por o ter lido e já dominada pelo entusiasmo de inicar uma nova leitura, ainda por decidir.