terça-feira, dezembro 06, 2005

Se vós não me quereis

Continuo a gostar. O cenário dos acontecimentos é Caracas, na Venezuela. A narradora acaba por ir narrando a história do país, desde que lá se estabeleceram os primeiros colonos. Apercebemo-nos desde o início que convivemos com uma narradora morta, que vai atravessando os tempos, evocando os sucessivos acontecimentos e dirigindo-se aos diversos personagens. Dona Inês fala com o marido, com as escravas, com os filhos, e sobretudo com Juan del Rosário, um mestiço, filho do marido e de uma escrava, com quem alimenta um litígio pela posse de umas terras, que o marido supostamente teria prometido ao filho bastardo. Essa disputa acaba por tornar-se na razão de viver dos dois, sucedendo-se, ao longo de anos e anos, cartas e recursos para a coroa, cada um apresentando as suas razões.

No capítulo intitulado "Se Vós não me quereis ( 1789-1819)", dona Inês dirige-se a um dos reis de Espanha a quem foi apresentado o problema. Fala assim com Carlos Quarto, na sequência de algumas determinações deste em relação à forma de tratamento a dar aos escravos no novo mundo: "Que trabalhassem de sol a sol e não mais; mas tu pensas que o cacau se apanha a meio da noite? E já no cúmulo da tua soberana generosidade, que se regulassem os castigos, a prisão, a grilheta e o cepo e não mais de vinte e cinco açoites, e isso com instrumento que não cause contusão grave ou efusão de sangue. Tu não sabes que custa bastante manter um escravo para depois desperdiçá-lo com tareia? Não, não o deves saber. Deves supor que com um estalo de dedos, como te servem a ti e aos teus lacaios, os escravos aparecem à nossa frente. Pois fica a saber de que aqui, também, por mais prodigiosa que seja a América, as mulheres demoram nove meses a parir, e passam pelo menos quinze anos até que o caralhinho vá por aí, para não falar dos que morrem ainda crianças, os que desgraçam a mão com os machados ou aqueles que são mordidos pelas cobras." (p.55)

1 Comments:

At 12 dezembro, 2005 17:42, Anonymous Anónimo said...

Olá,
Temos lido com atenção os seus blogs. Gostávamos de convidá-la a propor-nos uma selecção de textos para uma eventual publicação.

Vítor Castro
atelier@doimpensavel.pt

 

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