A morte da avó
" (....)
Repeti: - Avó - e a mão agitou-se, sem eu saber o que significava isso quanto à eficácia das vozes e à existência dessa tal atenção que se reconduziria, etc. - Quer que chame o padre?
Sim, decerto: já expliquei. Ela frequentava o culto, mandava celebrar missas pelos seus mortos, confessava-se e comungava. (....)
A avó abre os olhos, e eu vejo uma nova luz áspera e gelada: a inteligência, uma energia que de repente recompõe todo o corpo e traz agora o retrato para o centro do tempo, tornando-o movimentado e audaz, completo. Nesse olhar progride agudamente um sorriso que o limpa da velhice e deixa o sal de uma fina malícia. Os lábios mexem-se, parecem brilhar um instante. O corpo renasce do próprio esgotamento. A avó diz:
- É tudo mentira....
(...)
pag. 134-135
Os Passos em Volta, Herberto Helder

Parece absurdo, como alguns dos mais belos textos deste livro, eu sei que parece assombrosamente absurdo, mas leio Herberto Helder deitada na cama e doente. Não encontro explicação para esta minha escolha, precisamente num dia em que me sinto tão mal.
Mas porque é que tudo deve ser explicável? Não deve.
"Era um cão que tinha um marinheiro. O cão perguntou à esposa, que se pode fazer com um marinheiro? Põe-se de guarda ao jardim, respondeu ela. - Não se deve deixar um marinheiro à solta no jardim, que fica perto do mar. Um marinheiro é uma criatura derivada por sufixação, e pode recear-se o poder do elemento de base: o radical mar. Em vez de guardar o jardim, ele acabaria por fugir para o mar. - Deixá-lo fugir, disse a esposa do cão. Mas ele não estava de acordo. Que um facto deveria ser esse mesmo facto até ao limite do possível: quem possui um marinheiro para guardar o jardim deve procurar mantê-lo a todo o custo, assim como o cão, ou o casal de cães, que não tiver um marinheiro deve não tê-lo até a isso ser absolutamente forçado. - Nesse caso, só nos resta ir para uma terra do interior, longe do mar, disse a cadela. E então foram para o interior, levando pela trela o marinheiro açaimado. Durante o percurso viram muitas paisagens. O marinheiro estava espantado com as paisagens que podem existir longe do mar. Fez diversas observações a esse respeito, provocando o risonho latido dos cães que, pela sua parte, concordavam em que tinham um marinheiro muito inteligente. - Nem todos os cães têm a nossa sorte, disse o cão, pois conheço vários cães que são donos de vários marinheiros estúpidos. Iam por isso bastante contentes e diziam, a outros cães com quem se cruzavam, que possuiam um marinheiro invulgarmente esperto. - Ele tem uma filosofia das paisagens, dizia o cão. (....)" Pag. 126
O resto? Leiam. A escrita e a leitura e as palavras e as histórias têm um significado diferente depois de ler talvez o melhor escritor português da actualidade. Eu digo talvez porque é só a minha opinião. Apenas por isso.
no lado esquerdo da alma

Leio Mário de Sá Carneiro, num dos meus habituais intervalos para ler poesia.
Devagar. É assim que leio.
Saboreando as palavras. Entrando nelas e demorando-me em cada uma, num ritual antigo e novo. Sempre.
Além-Tédio
Nada me expira já, nada me vive -
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.
Como eu quisera, enfim d'alma esquecida,
Dormir em paz num leito d'hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.
Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-novo, fui-me Deus
No grande rastro fulgo que me ardia.
Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu...Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!
Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...
Paris, 15 de Maio de 1913
A Chuva Pasmada, Mia Couto

Sei que hei-de ficar sempre pasmada. Sempre que tiver à minha frente a escrita mágica de Mia Couto. Sempre.
"Não era tristeza. Era um vazio. Os tristes têm um céu. Cinzento, mas céu. Os desesperados têm um deserto. Meu pai olhava para trás: era mais o esquecido que o vivido. O que não lembrava era porque se esquecera de viver? Ou tudo tinha ficado lá, na mina que desmoronou? Quando se cruzava comigo, de pijama, a meio do dia, meu pai se justificava:
- Sua mãe quer que eu faça dessas coisas que criam alma na pessoa. Só que ela não entende: se eu estou vivo é porque não tenho alma nenhuma.
E agora, olhando-o sob aquele estilhaçado luar, me pareceu que meu pai não era senão poeira entre poeiras de Lua." (pag. 15)
Sem palavras outras. Estas são tudo.