sexta-feira, dezembro 23, 2005

matéria solar


42

Vê como se morre devagar
neste inverno
que se aproxima da cintura;

como a chuva entra pelo sono
e a sombra mais amarga
se vai juntando à terra nua;

ou a fria chama da cal
tarda.
(p.325)


Abri o meu Eugénio de Andrade à procura de qualquer coisa triste para ler. Queria ler alguma coisa que conseguisse suplantar a tristeza que sinto. Mas é impossível.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Atavios


Mais poesia. "Atavios" de Teresa Klut. Li este livro começando pela primeira página, uma coisa que raramente faço quando leio poesia. Mas por alguma razão que desconheço, provavelmente razão nenhuma, abri-o na primeira página. Fui lendo devagar e passando as páginas devagar, uma a seguir à outra. Quando dei por mim tinha chegado ao fim de "Atavios".
O livro está dividido em duas partes: a primeira intitulada "morrer" e a segunda "nascer".
O amor. Outra vez o amor.

XVI

Um amor assim só acontece uma vez.
Assim, só um avez.
Um amor que fala esta língua,
tem um cheiro próprio,
um sabor intenso,
uma luz quente.
Se o defraudamos, nunca mais volta.
Nunca mais.
A ironia é sabê-lo tarde demais
como uma melodia distante e bela. (p.45)

XVII

Uma melodia distante e bela. (p.47)


XXIII

- Queres saber a única verdade que a vida encerra?

- Queres que te diga o que fica depois de tudo?

- Ou preferes ficar num abraço que só os meus braços
te sabem dar? (p.59)

XXV

- Vês? Esta é a única verdade! (p.63)


Estou na última página. O livro termina com este poema de uma única frase. Fico nostálgica. Com saudades dessa tal "única verdade" que me escapou sempre. sempre. sempre.

domingo, dezembro 18, 2005

todo o amor?

Deixo repousar Dona Inês por entre os escombros de todas as suas gerações passadas, deixo-a descansar dentro do livro fechado, deixo-a parar de contar e dormitar um pouco, deixando escapar de vez em quando os habituais reparos à má memória de Alejandro.
Deixo repousar Dona Inês e abro "A criança em ruinas". Outra vez o jogo.

"todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada. ficaram só
os papeis e a tristeza, ficou só a amargura (.......)"
(p.75)

ora pois então. o amor não serve de nada. não? o amor. o amor não serve de nada. não serve não. não serve de nada e é tudo o que eu quero.

Outra vez Dona Inês. Nostálgica.

Voltei a "Dona Inês contra o Esquecimento" e passaram dois séculos, na sucessão de acontecimentos que vão compondo a história da Venezuela. Por entre generais e revoluções, terramotos e desgraças, em que sempre está envolvido algum descendente ou conhecido da família de Dona Inês, vamos acompanhando o desenvolvimento do lugarejo chamado Caracas do início do livro até à cidade do século XX. Dona Inês, a morta, continua a falar com o marido morto, e dá-lhe raspanetes, repreendendo-o pela sua ingenuidade ou ignorância. Os terrenos de Dona Inês foram expropriados. A casa onde viveram várias gerações acabou no chão, por força do progresso.

No capítulo intitulado "Léon Bemdelac descobre a América (1926-1935)", ficamos a conhecer um turco, ourives de profissão, que chegou à Venezuela sem nada, para começar um negócio, fixando-se na pequena Barcelona, antes de decidir mudar para Caracas. Compra um burro e torna-se vendedor ambulante. Quando as pessoas ouviam o badalo que tinha posto na testa do burro, gritavam: "Aí vem o turco Vendelá - e cumprimentavam-no com simpatia e perguntavam-lhe - Vendelá, que trazes aí para vender, Vendelá?"
"Léon Bendelac imaginava Caracas como uma imensa urbe onde se via completamente perdido. Além disso, o cheiro do mar reconfortava-o, a neblina do amanhecer e a brisa entre as palmeiras traziam-lhe, por vezes, um gesto familiar muito breve, mas suficiente para o acompanhar na sua solidão." (p.172)

(Faço uma pequena pausa. Fecho o livro por instantes, marcando a página com a mão, e penso que é este o efeito do mar em mim. O mar reconforta-me, sempre. O mar acompanha-me na minha solidão.)

Leio rápido, chego à terceira parte (1935 - 1985) e inicio o capítulo "Dona Inês Nostálgica":

"Morreu o General Gomez, Alejandro, a morte mais dificil da nossa história. (....) Choraram-no os seus cento e dezassete filhos e as suas vinte e três mulheres, choraram-no os seus dez mil cavalos e as suas cinquenta mil vacas, choraram-no as suas dezoito fazendas e os seus trinta e dois rebanhos, mas não o chorou mais ninguém, porque quando toda a gente teve a certeza que tinha morrido, declararam-no ditador e tiraram-lhe o título de benemérito. (p.199)

sexta-feira, dezembro 16, 2005

o amor

Continuei o meu jogo pela madrugada dentro. Fechava o livro e pensava, tenho de dormir, fechava o livro, mas voltava a abri-lo. Abria o livro ao acaso depois de te o ter fechado e lia mais um poema, fazendo cada palavra demorar-se na boca, nos olhos, na cabeça. em cada palavra ficava um bocadinho sentada lá dentro, aconchegada, ou com medo, ou com certezas. ou com mais palavras apenas. com as minhas palavras não ditas. porque nunca soube escrever poesia.

É manhã e volto a repetir o jogo:


fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.


(p. 57)

é exactamente isso. o amor é tudo o que dizes. tudo e apenas.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

também estou sozinha

Tinha dito, só um, já é tarde, a poesia só se pode ler devagar, tinha dito, mas depois. Depois apeteceu-me ler mais e abri o livro outra vez ao acaso, como num jogo. Abri o livro ao acaso como num jogo e li assim.



estou sozinho de olhos abertos para a escuridão. estou sozinho.
estou sozinho e nunca aprendi a estar sozinho. estou sozinho.
sinto falta de palavras. estou sozinho. estou sozinho.
sinto falta de uns olhos onde possa imaginar. estou sozinho.
sinto falta de mim em mim. estou sozinho. estou sozinho.
estou sozinho.

(p.33)



Eu também estou sozinha. Estou sozinha essas vezes todas repetidas e tornadas a repetir. estou sozinha. estou sozinha.estou sozinha. estou sozinha. também. também estou sozinha. sozinha estou. também sozinha. sozinha estou. também. sozinha, sozinha, sozinha. passo a vida a sozinhar. sozinhando vou, sozinhando ando, ando, ando, cansada de sozinhar, com saudades de sozinhar, farta de sozinhar, com vontade de sozinhar. sozinhadamente tudo se é e nada. nada. nada.

A criança em ruinas


Mergulhada num enorme cansaço, faço uma pausa para ler poesia.
Abro "A criança em ruínas", do José Luís Peixoto, e leio:


estou deitado sobre a minha ausência
como poderia estar deitado se existisse.
amanhã as ondas imitar-me-ão na praia.

(p.40)

Fecho o livro. E vou deitar-me para dormir como se já tivesse descansado tudo.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Crónica de guerra

"A menina chora e a negra aproxima-a do seu seio e diz-lhe muitas palavras que não sabe escrever: "Dona Isabel, diga-me sua mercê, como devo dizer, docinho, passarinho, menina com juízo, a negra te levanta, a negra te deita. Escreva-me sua mercê como são as palavras que eu digo." Isabel pega-lhe na mão e faz-lhe escrever o seu nome. "Não penses tu, Daría, que todas as brancas sabem escrever, escrever não é missão de mulheres. Eu prometo-te que, quando a guerra terminar, te ensinarei a escrever."
Alejandro, porque não nos dão um pouquinho de paz? Porque é que não posso estar tranquila a contemplar esta cena que gostaria que fosse a última que os meus olhos vissem?" (p.66)

Também me demorei a contemplar esta cena, primeiro sob a forma que têm as palavras escritas algures a meio do capítulo intitulado "Crónicas de Guerra (1810 - 1814)" e quase de imediato sob a forma de figuras e cenários que a minha imaginação costuma inventar para tudo o que vem nos livros de que gosto.
Até os piores momentos são descritos de tal forma que eu diria ficarem belos.
"O pranto da menina esgota-se e Daría sente que é apenas um pequeno fardo o que levaa entre os braços, fala-lhe, canta-lhe, com uma voz rouca que é o resto de um lamento, "São João se vai, o ano que vem, Isabelita, Isabelona, São João voltará, a tua neghra te leva, a tua negra te adormece." Isabel parece adormecida, mas Daría sabe que não é um sono tranquilo, passa-lhe o dedo pelos lábios fendidos pelo sol e o ventre inchado, já não chora, já não sua, abre, por vezes, a boca e a língua seca tenta imitar fatigadamente o gesto de uns lábios que mamam." (p.81)

terça-feira, dezembro 06, 2005

Se vós não me quereis

Continuo a gostar. O cenário dos acontecimentos é Caracas, na Venezuela. A narradora acaba por ir narrando a história do país, desde que lá se estabeleceram os primeiros colonos. Apercebemo-nos desde o início que convivemos com uma narradora morta, que vai atravessando os tempos, evocando os sucessivos acontecimentos e dirigindo-se aos diversos personagens. Dona Inês fala com o marido, com as escravas, com os filhos, e sobretudo com Juan del Rosário, um mestiço, filho do marido e de uma escrava, com quem alimenta um litígio pela posse de umas terras, que o marido supostamente teria prometido ao filho bastardo. Essa disputa acaba por tornar-se na razão de viver dos dois, sucedendo-se, ao longo de anos e anos, cartas e recursos para a coroa, cada um apresentando as suas razões.

No capítulo intitulado "Se Vós não me quereis ( 1789-1819)", dona Inês dirige-se a um dos reis de Espanha a quem foi apresentado o problema. Fala assim com Carlos Quarto, na sequência de algumas determinações deste em relação à forma de tratamento a dar aos escravos no novo mundo: "Que trabalhassem de sol a sol e não mais; mas tu pensas que o cacau se apanha a meio da noite? E já no cúmulo da tua soberana generosidade, que se regulassem os castigos, a prisão, a grilheta e o cepo e não mais de vinte e cinco açoites, e isso com instrumento que não cause contusão grave ou efusão de sangue. Tu não sabes que custa bastante manter um escravo para depois desperdiçá-lo com tareia? Não, não o deves saber. Deves supor que com um estalo de dedos, como te servem a ti e aos teus lacaios, os escravos aparecem à nossa frente. Pois fica a saber de que aqui, também, por mais prodigiosa que seja a América, as mulheres demoram nove meses a parir, e passam pelo menos quinze anos até que o caralhinho vá por aí, para não falar dos que morrem ainda crianças, os que desgraçam a mão com os machados ou aqueles que são mordidos pelas cobras." (p.55)

sábado, dezembro 03, 2005

Dona Inês contra o Esquecimento

Por vezes, a escolha de um livro pode ser assim: uma aventura no desconhecido, um fazer frente à sorte a ver o que nos sai. Foi o que me aconteceu neste caso. Comprei o livro sem dele nada saber e sem ter a mínima ideia de quem é a autora, Ana Teresa Torres. Apeteceu-me arriscar e comprei este livro. "Dona Inês contra o Esquecimento."
Comecei logo por gostar. O primeiro capítulo - Dona Inês entre Memoriais (1715-1732) - começa assim:

"A minha vida foi atravessar manhãs lentas, dias longos que o tempo percorria vagarosamente, vigiar o trabalho das escravas, vê-las varrer as lajes dos pátios, dar brilho aos mosaicos e azulejos que mandei trazer da Andaluzia, apanhar as folhas soltas do limoeiro e regar a goiabeira do quintal; bordar um ou outro ponto de uma toalha, ou dar uma volta pela cozinha para provar a sopa e procurar que tudo estivesse bem antes que chegasse Alejandro, e durante o almoço, perguntar-lhe o q se tinha discutido na Câmara, a como estavam os preços do cacau ou se tinha afundado o barco que o transportava." (p.13)

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Agradece o Beijo (3)

Acabei. Talvez por desejar tanto começar a ler outro livro. O certo é que acabei e não me ficaram na memória muito mais partes que me apetecesse salvar. Volto a folhear o livro, na tentativa de encontrar alguma que me tivesse escapado. Demoro os olhos na página 247, mas as frases continuam a não me dizer grande coisa. Arrepio-me quando leio: "Uma mulher entra no carro que a transporta a sua casa. Uma casa onde lhe começa a faltar o ar e o sol não entra. Sobre ela, imagina aesvoaçar um bando de abutres que farejam a morte lenta do seu amor."
O livro começa no ano zero da vida de uma criança, quando esta está ainda dentro do ventre materno, e termina no ano 45, no momento em que Luísa (essa criança) assiste à morte da mãe. Os capítulos são contados por anos: ano um, ano dois, ano três, até dar uns saltos e chegar ao 45.
A história passa-se durante a ditadura de Salazar e tenta retratar a forma como a sociedade se estruturava à volta de determinados valores. Uma sociedade em que as mulheres não contavam, os maridos e os homens em geral dominavam tudo, e por detrás da aparência de poder e respeito se escondiam vícios como a pedofilia.
O que mais sobressai é a forma como as mulheres, as crianças e outros seres indefesos, como o caso do rapaz que queria mudar de sexo, são obrigados a viver no medo, incompreendidos por quase todos os outros. Mas a forma como tudo é descrito não me atriu. O cenário muda de repente sem se saber, até metade do livro, qual a relação entre as personagens, sem nenhum aviso, muda-se de um narrador para outro. Tudo bem, seria aceitável se eu não tivesse embirrado com o livro no momento em que comecei a lê-lo.
Talvez o verdadeiro defeito esteja em mim, que não fiz uma pausa (e deveria ter feito) quando acabei de ler o fabuloso Gabriel García Marquez. Devia ter parado. ficado o resto do dia sem ler mais nada e talvez o dia seguinte e quem saber ainda mais um. Vou tentar não repetir o erro.
Luísa despede-se de Constança, junto à sua cama do Hospital: "O tempo teve o bom gosto de lhe amenizar os traços e de a tornar mais bonita. Nunca os seus sorrisos se transformaram em esgares ou as rusgas em sulcos de desdém,nem a boca num traço de indiferença. É esta a imagem que guardarei para sempre, até ao dia em que, quem sabe, o meu filho me assista também nesta viagem.
Vá em paz mãe. Deixe-se embalar na nossa canção. Ainda se lembra." (p.309)