sexta-feira, setembro 14, 2007

A morte da avó

" (....)
Repeti: - Avó - e a mão agitou-se, sem eu saber o que significava isso quanto à eficácia das vozes e à existência dessa tal atenção que se reconduziria, etc. - Quer que chame o padre?
Sim, decerto: já expliquei. Ela frequentava o culto, mandava celebrar missas pelos seus mortos, confessava-se e comungava. (....)
A avó abre os olhos, e eu vejo uma nova luz áspera e gelada: a inteligência, uma energia que de repente recompõe todo o corpo e traz agora o retrato para o centro do tempo, tornando-o movimentado e audaz, completo. Nesse olhar progride agudamente um sorriso que o limpa da velhice e deixa o sal de uma fina malícia. Os lábios mexem-se, parecem brilhar um instante. O corpo renasce do próprio esgotamento. A avó diz:
- É tudo mentira....
(...)
pag. 134-135

quinta-feira, setembro 13, 2007

Os Passos em Volta, Herberto Helder

Parece absurdo, como alguns dos mais belos textos deste livro, eu sei que parece assombrosamente absurdo, mas leio Herberto Helder deitada na cama e doente. Não encontro explicação para esta minha escolha, precisamente num dia em que me sinto tão mal.
Mas porque é que tudo deve ser explicável? Não deve.

"Era um cão que tinha um marinheiro. O cão perguntou à esposa, que se pode fazer com um marinheiro? Põe-se de guarda ao jardim, respondeu ela. - Não se deve deixar um marinheiro à solta no jardim, que fica perto do mar. Um marinheiro é uma criatura derivada por sufixação, e pode recear-se o poder do elemento de base: o radical mar. Em vez de guardar o jardim, ele acabaria por fugir para o mar. - Deixá-lo fugir, disse a esposa do cão. Mas ele não estava de acordo. Que um facto deveria ser esse mesmo facto até ao limite do possível: quem possui um marinheiro para guardar o jardim deve procurar mantê-lo a todo o custo, assim como o cão, ou o casal de cães, que não tiver um marinheiro deve não tê-lo até a isso ser absolutamente forçado. - Nesse caso, só nos resta ir para uma terra do interior, longe do mar, disse a cadela. E então foram para o interior, levando pela trela o marinheiro açaimado. Durante o percurso viram muitas paisagens. O marinheiro estava espantado com as paisagens que podem existir longe do mar. Fez diversas observações a esse respeito, provocando o risonho latido dos cães que, pela sua parte, concordavam em que tinham um marinheiro muito inteligente. - Nem todos os cães têm a nossa sorte, disse o cão, pois conheço vários cães que são donos de vários marinheiros estúpidos. Iam por isso bastante contentes e diziam, a outros cães com quem se cruzavam, que possuiam um marinheiro invulgarmente esperto. - Ele tem uma filosofia das paisagens, dizia o cão. (....)" Pag. 126

O resto? Leiam. A escrita e a leitura e as palavras e as histórias têm um significado diferente depois de ler talvez o melhor escritor português da actualidade. Eu digo talvez porque é só a minha opinião. Apenas por isso.

segunda-feira, setembro 10, 2007

no lado esquerdo da alma

Leio Mário de Sá Carneiro, num dos meus habituais intervalos para ler poesia.
Devagar. É assim que leio.
Saboreando as palavras. Entrando nelas e demorando-me em cada uma, num ritual antigo e novo. Sempre.

Além-Tédio

Nada me expira já, nada me vive -
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim d'alma esquecida,
Dormir em paz num leito d'hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-novo, fui-me Deus
No grande rastro fulgo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu...Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

Paris, 15 de Maio de 1913

quarta-feira, setembro 05, 2007

A Chuva Pasmada, Mia Couto


Sei que hei-de ficar sempre pasmada. Sempre que tiver à minha frente a escrita mágica de Mia Couto. Sempre.

"Não era tristeza. Era um vazio. Os tristes têm um céu. Cinzento, mas céu. Os desesperados têm um deserto. Meu pai olhava para trás: era mais o esquecido que o vivido. O que não lembrava era porque se esquecera de viver? Ou tudo tinha ficado lá, na mina que desmoronou? Quando se cruzava comigo, de pijama, a meio do dia, meu pai se justificava:
- Sua mãe quer que eu faça dessas coisas que criam alma na pessoa. Só que ela não entende: se eu estou vivo é porque não tenho alma nenhuma.
E agora, olhando-o sob aquele estilhaçado luar, me pareceu que meu pai não era senão poeira entre poeiras de Lua." (pag. 15)

Sem palavras outras. Estas são tudo.