quarta-feira, novembro 30, 2005

Agradece o Beijo (2)

"Ouriço, ouricinho, mostra lá o teu focinho" (p. 49)

"Às tantas Flauta pára, arregaça as saias até aos joelhos e afasta as pernas. Num riso desdentado levanta a cara para o céu.
- Está a fazer chichi em pé! - diz Catarina estupefacta.
- Não faças barulho, é mesmo assim. - Luísa, já habituada às excentricidades da Flauta, faz-lhe sinal para se calar.
Quando a Flauta termina, deixa cair as saias e ri, ri como uma criança. " (p.52)

terça-feira, novembro 29, 2005

Agradece o Beijo



Não sei onde estava com o juízo quando me levantei, fui até à estante e escolhi o próximo livro para ler: decidi ler o primeiro ainda não lido com que esbarrasse. Calhou ser "Agradece o Beijo", de Ana Zanatti, que me foi oferecido pela editora na última feira do livro do Funchal.
A verdade é que já passei de metade do livro e ainda não consegui gostar dele. Leio mas não me apaixono. Em determinadas passagens irrito-me. Verei o que consigo salvar dele para aqui deixar.

A dedicatória: "À criança que mora dentro de todos." Uma citação da Marqguerite Yourcenar, na página anterior: As nossas fantasias bem se esforçam por vestir as coisas mas as coisas são divinamente nuas."
A cantiga que Constança canta à filha recém-nascida na página 23: "Morte que mataste Lira/Mata-me a mim que sou teu/Mata-me com os mesmos ferros/Com que a Lira morreu."
O jogo das crianças no recreio da escola, na página 45: "Q' linda falua/Q' lá vem, lá vem/É uma falua que vem de Belém/Passará não passará/Mas alguém ficará/Se não for a mãe da frente/É o filho lá de trás."

Na página 67, uma passagem sobre o jogo de sabores a que brincam as duas meninas, Luísa e Catarina: "Temos este hábito. Uma espécie de jogo. Começámos pelas flores, até descobrirmos que tudo tinha um sabor. O que sentíamos, víamos ou fazíamos. Até os segredos. A mim sabiam-me a violetas, a ela a folhas secas. Os trevos sabiam-lhe a medo. A mim o medo sabia-me a pó com um toque de lavanda a fazer lembrar a água de colónia do meu pai."

Memória das minhas putas tristes (3)

A menina dormiu toda a noite.

"Quando voltei fresco e vestido ao quarto de dormir, a menina dormia de barriga para cima à luz conciliadora do amanhecer, atravessada de um lado a outro da cama, com os braços abertos em cruz e senhora absoluta da sua virgindade. Que Dues ta guarde, disse-lhe." (p. 32)

Não cometo o erro de contar o resto da história....não vou falar dos outros encontros do narrador com a menina. Apenas deixo um excerto da pag.63.

"Desde então tive-a na minha memória com tal nitidez que fazia dela o que queria. Mudava-lhe a cor dos olhos conforme o meu estado de espírito: cor de água ao despertar, cor de calda de açúcar quando ria, cor de lume quando a contrariava. Vestia-a de acordo com a idade e a condição que convinham às minhas mudanças de humor: noviça apaixonada aos vinte anos, puta de salão aos quarenta, rainha da babilónia aos setenta, santa aos cem. Cantávamos duetos de amor de Puccini, boleros de Agustin Lara, tangos de Carlos Gardel, e verificávamos uma vez mais que os que não cantam não podem sequer imaginar o que é a felicidade de cantar. Hoje sei que não foi uma alucinação mas um milagre mais do primeiro amor da minha vida aos noventa anos."

Li todo o livro na mesma manhã em que decidi lê-lo. É Gabriel García Marquez, não são necessárias mais palavras. Para quê?

segunda-feira, novembro 28, 2005

Memória das minhas putas tristes (2)

O herói de noventa anos contacta a dona de um cabaré que muito tinha frequentado, para que lhe arranje a rapariga virgem. À hora combinada, ele chegou e a rapariga já lá estava, mas a dormir.

"Entrei no quarto com o coração enlouquecido e vi a menina adormecida, nua e desamparada na enorme cama de aluguer, como a pariu a mãe. Jazia meio de lado, de cara para a porta, iluminada do tecto por uma luz intensa que não perdoava qualquer pormenor. Sentei-me a contemplá-la na borda da cama com um deslumbramento dos cinco sentidos." Mais à frente:
"O melhor do seu corpo eram os pés grandes de passos silenciosos, com dedos compridos e sensíveis como os das mãos" (p.29)

Duas páginas à frente: "Tentando não a despertar, sentei-me nu ca cama com a vista já habituada aos enganos da luz vermelha, e analisei-a palmo a palmo." (...) Cantei-lhe ao ouvido: A cama de Delgadina está rodeada de anjos" (p.31)

Memória das minhas putas tristes


Demorei-me na estante à procura de um novo livro para ler e encontrei este, comprado na última Feira
do Livro. Comecei a ler e só parei no final da página 114, a última. Gostei, pois claro.
Até hoje gostei de todos os livros do Gabriel Garcia Marques. Este começa assim:

"No ano dos meus noventa anos quis oferecer a mim mesmo uma noite de amor louco com uma
adolescente virgem."

domingo, novembro 27, 2005

O teu lugar no meu corpo

O livro de Ana Teresa Pereira - "A coisa que eu sou" - está dividido em duas partes, cada uma com sete contos. Os da primeira parte estão identificados como "Ghost Stories", e os da segunda como "Fairy Tales".
Todos os contos são misteriosos, sombrios, com personagens e cenários que se entrecruzam sem sabermos se são os mesmos ou outros. Em todos há cheiros e flores. Muitos deles passam-se em jardins estranhos, povoados de perfumes, de sombras, de impossível, de memórias.
Há rosas, beladonas, camélias brancas, magnólias...flores que permanecem para além do tempo e de todos os mistérios. O penúltimo conto chama-se "O Teu Lugar No Meu Corpo" e começa assim:

"Ela cheirava a rosas e a flores de pessegueiro. No princípio Tom pensava que se tratava de um perfume, mas depois percebera que aquilo emanava da sua pele, como se tivesse entranhado o cheiro do jardim.
Mas isso não era demasiado estranho. Tinha algo a ver com a sua condição de planta, de pássaro, de livro.
«De sombra», dizia ela." (p.145)

sábado, novembro 26, 2005

As rosas

"Inclinou-se um pouco para a frente, fascinada. Deixou-se cair.
Por instantes, foi como se tivesse asas.
Depois a água fria. Abriu a boca e engoliu uma golfada de água negra e flores.
"Tom", pensou.
Fechou os olhos e, lentamente, deixou que a água a bebesse." (p.121)

Há finais, como este, que eu gostaria de ter escrito.

Camélias brancas

"Fora estranho voltar à casa depois de tantos anos.
A casa de onde mesmo os fantasmas tinham desertado. Se tivera alguma fantasia de reencontrar o menino louro que correra por aquelas escadas, que subira às árvores, que uma vez quase se afogara num dos tanques, ela não se confirmara.
Não era verdade que os meninos ficavam nas casas, à espera de que um dia os homens de cinquenta anos, de cabelos já não louros mas brancos viessem procurá-los, com os braços estendidos para a frente e as mãos vazias de dedos afilados."

É assim que começa o conto intitulado "Camélias brancas", na página 89. Gosto de um começo assim.

A coisa que eu sou


Ando a ler isto. "A coisa que eu sou", de Ana Teresa Pereira. Vou na página 73, no conto de que até agora estou a gostar mais: "Da realidade das sombras". Vou exactamente nesta parte:

"- Eras tu - murmurou.
- Sempre.
Ela, sentada à beira de uma fonte seca, no centro de um jardim abandonado.
Ela, imóvel, junto a uma porta que não existia.
Ela, ainda, descendo de um comboio, numa noite de nevoeiro.
(A forma como a sua cabeça caía para o lado, como a dum pássaro, quando fazia amor...)
Ela deitando veneno num copo...
Ela, morta num quarto fechado.
Perdeu-se nos olhos da mulher como num espelho."